5/17/2006

CARRILHO: SOB O SIGNO DA VAIDADE


Tremo, contemplando o volume que me espreita do tampo da secretária. O olhar do autor, que nos contempla desde a capa coíbe-me, desde logo, de me socorrer de Barthes, cangalheiro do “autor”. A presença do vulto por trás do texto é-me imposta de imediato. Está lá, na capa, no texto e no intertexto, como descobri mais tarde. Criticar um livro do Dr. Carrilho é uma empreitada de respeito. Ainda por cima enfrentando de cernelha um documento desta importância; ao povo é fácil agarrá-lo pelos cornos – tomo a liberdade literária, não a temeridade literal – e com uma benesses no cachaço, levá-lo pela argola do nariz para onde o quisermos levar. Mas o Dr. Carrilho, com um curriculum que só se consegue ler depois de uma pós-graduação em filologia francesa é vinho de outra cepa. O homem é um pensador, um erudito, um filósofo, dizem. Diz-se. Fico perdido e sem saber por onde começar.

Começo por Eduardo Prado Coelho (não é onde começa tudo e acaba tudo?). E fico mais tranquilo. Prado Coelho diz-nos que o livro é “um texto que se lê com extrema facilidade, como se fosse um romance policial”. Depois acabrunho-me. EPC lê romances policiais? Quais? Será apenas uma metáfora, opondo duas realidades estruturais mas redundando num mesmo prazer do texto? E lá está outra vez o fantasma barthiano. Bolas, que não me livro da lapa. Um policial não pode ser lido em mergulhos aleatórios e langorosos, que diabo. Tem de ser levado de enfiada, a informação acumula-se em blocos lógicos, essenciais, provas e meias-provas, verdades e meias verdades. O autor tem de levar o leitor pelo cangote, baralhando-lhe as percepções. É o que faço. Leio o livro de enfiada, uma tarde de domingo entregue ao mundo sórdido da política portuguesa. Policial?

Hesito entre as fontes a consultar. De que água terá bebido EPC? Não de Hammett certamente, talvez Andreu Martín? Ed McBain? Fiquemo-nos pelos franceses.

Thomas Narcejac e Pierre Boileau, para desgosto de Robert Deleuse, consideram que “para escrever um romance policial, o autor tem que ter mão sobre as suas personagens, da primeira à última página (…); é-lhe completamente vedado dar-lhes qualquer liberdade, deixar-se guiar por elas como faz normalmente um bom romancista. (…) A necessidade de mistério está presente da primeira à última linha; ela oprime todas as descrições, todos os diálogos, todas as análises de carácter”. (Le Roman Policier, Payot, 1964).

Infelizmente, Carrilho não abre espaço ao mistério, o autor perdeu o controlo das personagens, e todas elas, da primeira à última, são caricaturas a preto e branco, dispostas sobre um tabuleiro de xadrez com idêntico padrão cromático. A primeira incursão de Manuel Maria Carrilho no mundo da ficção é um mergulho no negrume do umbigo. Se Carrilho, autor, é uma figura monótona, seca, desinteressante, a personagem Carrilho é-o à enésima potência. Se o autor se bateu (bem ou mal) numa campanha política da qual saiu derrotado, a personagem é apenas uma vítima sem características redentoras. Na verdade, enquanto personagem, Carrilho parece ter saído da pena de uma autora se segunda como Clara Pinto Correia: “um dos homens mais inteligentes que existem no nosso país. E que tem tanta energia que ninguém aguenta o ritmo dele. E, só para chatear, é bonito e veste-se bem, e nem sequer disfarça que é vaidoso, e tem ideias e corta a direito, e não tem medo de fazer inimigos e não desiste”.

É uma personagem sem defeitos, sem falhas pessoais, tal como o autor no-lo repete infinitamente; antes de chegarmos a um terço do livro, já levamos com o “incorruptível” (pag.26), dotado de “total desprendimento pelo poder” (p.32), um homem de “convicções, frontalidade, mas também desprendimento e leveza” (p.34), que traço na política uma “trajectória de frontalidade política, de desprendimento partidário e de indiferença mediática” (p.37), num rosário que se estende pelo remanescente do texto (por vezes com o contributo de ‘insuspeitos’ figurões, como Victorino d’Almeida, Vincente Jorge Silva, José Sócrates ou Jorge Coelho), ferindo-nos como nos fere o cheiro desagradável que se infiltra nas narinas depois de termos pisado qualquer coisa que não devíamos.

Tal pulcritude de carácter estende-se contagiosa a todas as personagens da sua facção (até os meros figurantes, não intervenientes, são descritos como “uma sociedade civil representada em toda a sua diversidade e também (…) em toda a sua qualidade”, p.71). A vertigem da vaidade estende-se sem qualquer lógica ou coerência, pois o autor, em todo o seu desprendimento de tudo e mais alguma coisa, não sente a necessidade de lógica e coerência.

Ora, uma personagem sem falhas, nunca conseguiu avivar uma obra literária. A não ser, porventura, que se lhe oponham personagens adversárias de carácter ambíguo, capazes de enriquecer o nível dramático da narrativa (que seria do sensaborão Jesus, sem Judas e Pilatos?). Infelizmente, para Carrilho, as personagens capazes de desempenhar tal papel, Santana Lopes, Marques Mendes, Rebelo de Sousa e, claro, as duas nemésis, Carmona Rodrigues e A. Cunha Vaz, são apenas polaridades opostas de Carrilho; “o candidato do PSD singularizava-se cada vez mais por uma quase total ausência de ideias e de propostas” (p.20), padecia de “óbvias tibiezas” (p.145) e ninguém o conhecia no estrangeiro. Vaz Cunha é apenas a cabeça do polvo que agita os seus sinistros tentáculos sob a superfície conturbada das águas, procurando – por motivos mal explicados – furar a bolha de oxigénio (e que bolha!) de Manuel Maria Carrilho.

Essencialmente, é o que resulta do interregno narrativo de páginas 97 a 105, são invejosos! Assim, sem mais, qual novela radiofónica da velha senhora, qual romances de cordel, qual estorinha de faca e alguidar. (Carlos Magno contava como certa vez, na campanha legislativa de Cavaco Silva, em 1987, este repetia a ladainha, “não consigo compreender porque foi o nosso Governo derrubado. Estávamos a governar bem”, até que uma velhinha alentejana lhe deu o mote das suas intervenções futuras ao gritar, inflamada, “Eles têm é inveja!” Poderemos, autorizadamente, ver aqui Carrilho a reinterpretar Cavaco? O próprio personagem confessa que se prontificou para “defrontar o então todo-poderoso Pedro Santana Lopes” (p.32), Secretário de Estado da Cultura de Cavaco, cargo que Carrilho viria a desempenhar como Ministro no Governo de Guterres. Édipo? A aventura governativa de Santana como PM veio cortar pela raiz um potencial enredo que em muito enriqueceria a obra de Carrilho. Fica a intenção).

Com personagens de modesta densidade psicológica, uma graça narrativa que faria Rui Nunes corar de vergonha, e um enredo digno do mais desbragado thriller de Dan Brown, conseguirá Carrilho ter mão sobre as suas personagens, desde a primeira à última página? Dificilmente. O novo Príncipe da política portuguesa segura-as como um amputado de polegares poderia segurar uma enguia viva, numa tina de lubrificante. Pior, não só as personagens não têm qualquer respeito por Carrilho, como não têm a mais pequena obediência ao autor. Pior ainda, casos há em que o enredo apenas se move, a duras penas, porque as personagens são uns chapados totós. É aquilo a que o crítico americano Damon Knight se referia como o “idiot plot”, o enredo que apenas evolui porque as personagens são completos idiotas.

Veja-se o caso de Jorge Coelho. A apresentação do vídeo de Bárbara Guimarães com o filho do narrador, parece desencadear uma merecida onda de protestos na comunicação social e nos meios críticos da cultura nacional. Como diz o narrador, “a situação tinha-se tornado muito difícil” (p.109). O que o obrigou “procurar relançar a candidatura” (p.110). Procedeu-se à reorganização da equipa, entregou-se a direcção da campanha a pessoa distinta, definiu-se o conjunto de personalidades mandatárias da candidatura. “A situação era, como já disse, muito difícil, mas ainda me parecia possível dar-lhe a volta”. Eis então que, com a inevitabilidade do desastre, quando tudo parecia ultrapassado, quando “avançámos (..) para um momento decisivo em qualquer campanha, o da mobilização mais massiva, (…) com um grande jantar na FIL” (p.113), dão a palavra a Jorge Coelho que, conforme descrito pelo autor (“enérgico e emotivo”) é um verdadeiro paquiderme no toca à sensibilidade, e se dirige “publicamente à Bárbara para lhe dizer que «o PS gosta de si e o povo de Lisboa gosta de si».

Mas o monopólio da idiotice não pertence a Coelho, se é que pertence a alguém, tão generosamente distribuído se mostra pelas várias personagens. Não bastasse o desaire do jantar, e as suas repercussões noticiosas, Carrilho é confrontado com um conjunto de sondagens pela qual deverá nortear a estratégia; uma que lhe dá a vitória, mas que segue um método menos fiável, outra que lhe dá a derrota, mas apresenta mais fiabilidade metodológica. Qual é a escolhida por “um dos homens mais inteligentes que existe no nosso país?” Pois, é essa sim… A que faz o enredo avançar…

E que dizer do mistério? Para além do mistério que é a motivação das personagens, não se vislumbram requebros curiosos da narrativa, pistas dúbias que espicacem a curiosidade, cantos ensombrados que exijam uma exploração do leitor. O resultado é sabido desde a primeira página: a derrota, estrondosa, nas eleições autárquicas de 2005. Não há drama.

Haverá tragédia? Barthes (Ahá, cá está ele!), dizia que a “leitura trágica é a mais perversa de todas as leituras: tenho prazer em ouvir contar uma história de que conheço o fim”. Mas esse prazer tem que ser derivado de uma complexidade emocional da personagem, de uma luta interior que o obrigue a defrontar as suas fraquezas para delas retirar o apoteótico final, onde morre o ‘homem’, mas nasce o ‘herói’. Carrilho teve entre mãos a possibilidade de aspirar à grandeza, explorando a vida de um político mediano, com aspirações de grandeza, que foi ofuscado pela fama da mulher, coqueluche da sociedade, da qual se pretendeu servir. Nemésis espadeirando a húbris.

Infelizmente, a personagem que Carrilho nos apresenta é demasiado mesquinha na sua superioridade autista para aspirar ao estatuto de trágica. É um mero aborrecimento, um irritante mosquito que não para de zumbir em busca de atenção. E, sem que o autor se aperceba (e volto a pedir emprestada a inspiração de EPC), cria-se com tudo isso “um efeito de monotonia, que é manifestamente mais do que monotonia, é um massacre, uma asfixia crescente”. Prado Coelho refere-se a Lacrimatória, de Jaime Rocha, mas bem poderia referir-se a Carrilho (aliás, como qualquer crítica de EPC, nada tem a ver com a obra sobre que versa, podendo o leitor entreter-se a intercambiá-la com outro texto de sua preferência. Experimente, é muito divertido).

O género policial, reduzido ao mínimo denominador comum, e parafraseado Maigret, trata sempre da meticulosa restauração da ordem após um perturbante momento de caos. O mundo fica desordenado depois do furto, da falsificação, da chantagem, da morte, e cabe ao protagonista repor a ordem interrompida.

Pretende Carrilho repor a ordem após uma injustiça sofrida? Prado Coelho e ­­­Carlos Leone parecem entender que sim. Para eles, Carrilho busca apenas expor “muitos aspectos dos bastidores da campanha e a explicação de certos golpes baixos” (EPC) e suscitar uma reflexão do poder mediático entre nós. Falha em ambos os entendimentos.

Primeiro porque Carrilho escolhe dedicar o livro aos filhos, permitindo a EPC escrever com lacrimejante alarvidade que “Manuel Carrilho procura acima de tudo esclarecer os filhos” para afastar a intenção meramente oportunística ou venal da obra. Erro redondo. Qualquer sinceridade que o gesto pudesse ter, seria imediatamente varrida pelo método escolhido: num texto que denuncia visceralmente, com uma contundência inaudita num candidato derrotado democraticamente, a exposição pública da sua vida familiar (desde o caso do bebé Dinis no CCB, até ao aperto de mão num “momento privado” num estúdio de televisão), é ele próprio quem mais uma vez coloca a sua vida familiar sob o escrutínio público.

Segundo porque é preciso ter uma visão muito ingénua do jornalismo português para achar qualquer fundo de verdade na obra de Carrilho.

Mas há algo que se salva neste texto, algo de histórico e imorredoiro.

A mais alta instância de desordem que podemos encontrar numa obra (policial ou outra), o mais agudo momento de perturbação da ordem humana, é a morte. A pergunta que se põe é qual o cadáver neste livro?

O autor responde-nos, de forma arrojada, no xadrez que jogou com a representação de si próprio: o cadáver é Carrilho. Morto sob o signo da vaidade.

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